quinta-feira, maio 2, 2024
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“VOCÊ SÓ SE DÁ BEM NA VIDA QUANDO FAZ AQUILO QUE GOSTA E BEM-FEITO”

Inspire-se com bate-papo que tivemos com Amyr Klink, palestrante do dia 26 de abril na feira SuperPet

Foto: Marina Klink

Com 40 anos de experiência como navegador e empreendedor, Amyr Khan Klink, de 68 anos, é conhecido no Brasil e no mundo por suas travessias e expertise na construção de barcos. Dentre os mais importantes projetos realizados por ele podemos citar a Travessia do Atlântico Sul (1984) realizada em um minúsculo barco a remo, que ainda é única no mundo; invernagem na Antártica em solitário (1989), onde passou 22 meses na Antártica, dos quais seis meses imobilizado no gelo; circum-navegação Polar – uma volta ao redor do continente antártico que fez sozinho (1998) e o projeto Antártica com a família (2006). Amyr também é autor dos livros “Não Há Tempo a Perder”, da Editora Alaúde/Tordesilhas; e de “Cem Dias Entre Céu e Mar”, “Paratii Entre Dois Polos”, “Mar Sem Fim” e “Linha D ́Água”, publicados pela Companhia das Letras, que também é responsável pelo mais recente livro baseado nas expedições do Amyr de autoria de Armando Oliveira, o “Capotar é Preciso”.

Fotos: Rogerio Montenegro – Chegada de Amyr Klink em sua primeira travessia, realizada no sul do Atlântico a remo. 

Amyr chegou a cursar Economia na Universidade São Paulo (USP) e a trabalhar em um banco, mas isso foi só um acidente de percurso em sua vida, que o ajudou a ter certeza de que seus objetivos e ambições eram outras. Conversar com Amyr sobre a sua trajetória, seus feitos e sua visão de vida é como bater um papo com um amigo ao telefone. E um papo bem direto e sincero, sem embromação. Com tamanha paixão e conhecimento sobre o mundo náutico o assunto flui naturalmente e por horas, se nos permitirmos fazer uma pausa nos tempos apressados em que vivemos. Tive a oportunidade de ter essa experiência e compartilho com vocês, nas próximas páginas, um pouco do que conversamos. Esse é apenas um gostinho para a palestra-show que Amyr fará no dia 26 de abril de 2023, na feira SuperPet.

Fotos: Arquivo pessoal/ Klink – Família Klink em expedição na Antártica em 2006
Fotos: Arquivo pessoal/ Klink
Fotos: Arquivo pessoal/ Klink – Paratii 2, barco que os levou até lá e realizou dezenas
de viagens antes de ser vendido para suíços esse ano

Revista Pet Center: Conte um pouco da sua infância e como o mar e o remo entraram em sua vida? Que idade você tinha quando começou a se interessar e praticar o remo?

Amyr Klink: Eu nasci em São Paulo, mas morei muitos anos em Paraty, RJ, onde passei minha infância e comecei a remar em canoas caiçaras já aos 5 ou 6 anos de idade. Lá eu tive meu primeiro contato com o mundo náutico, de um jeito engraçado, porque a cidade tem uma intimidade muito estreita com o mar, que entra nas ruas e recebe barcos do mundo todo. Então, foi algo natural me interessar pelo mundo dos viajantes marítimos. Porém, o que consolidou o meu interesse por esse mundo foi a literatura. Quando era pequeno, meus pais falavam muitas línguas (7 ou 8 línguas cada um), então, resolvi aprender o francês. Em seguida, fiz um curso de literatura francesa. Quando me cansei de ler os clássicos franceses, descobri uma coleção de livros chamada Meret Aventures (em português, “Mar e Aventuras”), da editora Astoure, que era composta por relatos de viajantes de barcos, mas com uma extrema qualidade literária. Não conheço um esportista ou empresário no Brasil que escreva bem – talvez tirando o Tostão. Então, isso me chamou atenção. Eram navegantes que tinham feito viagens espetaculares e precárias, mas com textos maravilhosos. De repente os protagonistas dessas histórias apareciam com um barquinho em Paraty e todo mundo me chamava para falar com eles, já que eu falava o francês. Isso tudo aconteceu na década de 1970. Mas foi na USP que tive a oportunidade de competir de forma olímpica com o remo e me encantei pelo mundo das competições náuticas. Quando voltei para Paraty, comecei a fazer pequenas e médias navegações e tive a ideia de construir o primeiro barco para travessia, quando já tinha quase 30 anos de idade. E, desde então, nunca mais parei.

Fotos: Arquivo pessoal/ Klink – Paisagem captada na circum-navegação de 2004, na Antártica
Fotos: Arquivo pessoal/ Klink – Tripulação de Amyr 

Revista Pet Center: Quando e como decidiu que queria se dedicar exclusivamente ao mundo náutico e deixar a Economia para trás?

Amyr Klink: Foi muito frustrante o meu período como economista. Primeiro porque a Economia é a ciência mais inútil de todas. É a ciência dos mentirosos, dos falsários e dos golpistas. Não gostei de trabalhar em banco. Por nenhum dinheiro no planeta eu queria ser o presidente do banco onde eu trabalhava. Mas os primeiros anos em Paraty, quando voltei, depois da universidade, foram difíceis, pois herdei do meu pai uma sucessão de dívidas e problemas financeiros gigantescos. Passei 10 anos consertando isso, me virando, até fazer a primeira travessia, em 1984. Mas meu objetivo nunca foi se tornar um empresário do mundo náutico, era só fazer os projetos que eu tinha na cabeça, de viagens que até hoje são inéditas no mundo.

Revista Pet Center: O que te motivou a começar a realizar as expedições que acabaram por marcar a sua vida? O que você buscava?

Amyr Klink: Foi um processo sucessivo. Primeiro fiz a travessia do Atlântico, que todos diziam ser impossível. A viagem foi super feliz, deu certo. Depois, queria evoluir. Como tinha vontade de conhecer a Antártica veio a ideia de fazer a invernagem lá. Como o grande risco de ir para a Antártica sozinho é o de ficar preso no gelo, então pensei: vou transformar o risco no meu objetivo e fazer um barco não para ir e voltar da Antártica, mas para ficar preso um ano lá. E aí o projeto inverteu completamente, passou de um projeto técnico para um projeto de estratégia, de logística, muito interessante, que ninguém tinha feito antes também.

Revista Pet Center: Você teve mentores ou o apoio de profissionais que te motivaram a realizar todas essas travessias?

Amyr Klink: Nunca tive mentores diretos, tive pessoas que me inspiraram muito, alguns empresários e navegadores, como os franceses Éric Tabarly e Jérôme Poncet. Percebi que todos eles tinham uma espécie de visão empreendedora também, não eram só bons navegadores. Não podiam depender de financiamento, patrocínio, como tem em outros esportes. Sabia que tinha que ser dono do meu nariz. Até porque, não queria vestir camiseta de empresa nenhuma. Foi aí que percebi que tinha que montar um negócio voltado para a atividade náutica e surgiu a ideia de fazer os flutuadores para atracação e marinas flutuantes. Toda vez que fazemos uma instalação de cais flutuante em Paraty, damos mais dignidade para as pessoas que moram na cidade. Antes, com aqueles cais fixos, era comum presenciar cenas de senhoras levantando os vestidos para não os molhar na água, pisando na lama, nas ostras, para ter acesso aos barcos. Hoje, com o cais flutuante, elas caminham até o barco, entram nele e viajam tranquilas. Montamos uma base náutica em Paraty que é o nosso sustento hoje. Foram 20 anos lutando contra a parede para a empresa dar certo, pois quem morava em Paraty não entendia que a região era única na América Latina, não tem nenhum lugar mais abrigado do que lá. Na época, eu falava que Paraty seria, um dia, a principal base náutica molhada de embarcações da América do Sul e hoje, a cidade é. Mas foi um trabalho, uma mudança de mentalidade, que tive que trabalhar por anos lá. O Brasil, em termos náuticos, é o país mais ignorante do mundo. Mesmo os pescadores e caiçaras, não sabiam como funciona o mundo náutico. Até grandes empresas só fizeram burrada, projetos ruins, que não funcionavam. Foi uma luta para tentar explicar como se deve fazer bem-feito. Hoje, Paraty é um modelo muito interessante, mas não ideal ainda.

Fotos: Arquivo pessoal/ Klink
Fotos: Arquivo pessoal/ Klink – Invernagem realizada em 1991 com barco de Amyr ancorado no gelo: viagem no polo Sul também foi documentada na revista Veja

Revista Pet Center: A que você atribui o seu sucesso nas travessias que se propôs a fazer?

Amyr Klink: Bem, eu não gosto de sofrer, não sou totalmente burro e tinha vontade de fazer viagens difíceis, mas sem sofrimento. Percebi que dava para fazer bem-feito. Muitos faziam essas travessias e voltas ao mundo, mas chegavam no fim mordidos por tubarão, morrendo de fome e desesperados. E eu consegui fazer dezenas e dezenas de viagens para lugares inóspitos que, muitas delas, nenhum outro barco, navio, quebra-gelo no mundo voltou a fazer, tudo sem sofrimento. Sempre planejei tudo com paciência, aprendendo muito com quem vive no mar, sendo aberto à opinião de terceiros, nunca me preocupei em ganhar dinheiro ou ter sucesso econômico ou social. Se seu objetivo na vida é se dar bem financeiramente você vai fracassar. Você só se dá bem na vida quando faz aquilo que gosta e bem-feito. No Brasil, somos o país da improvisação e essa cultura da esperteza não funciona no mar. O ambiente é imprevisível, então, por mais simples que seja, você precisa fazer bem-feito. Pequenas coisas no mundo náutico são grandes desafios. Hoje há grandes fontes de informação para aprender tudo isso, eu aprendi sem internet, somente conversando com outros navegadores, descobrindo que os melhores barcos eram os mais simples. Na nossa empresa acabamos misturando duas formas de conhecimento, o ultra avançado, com tecnologias novas, ligas especiais, com o conhecimento naval de mestres canoeiros, bianistas do Maranhão, da Amazônia etc. Essa mistura do conhecimento prático como acadêmico fez com que ficássemos conhecidos fora do Brasil como uma empresa inovadora. Fizemos barcos extremamente inovadores e revolucionários. Acabei de vender o Paratii 2, um barco que já tinha umas 10 voltas ao mundo de navegação, para uma companhia suíça e eu não estava com vontade de vender. Era um barco que podíamos encalhar nas pedras com ele, todos ficavam impressionados com as manobras ultrarradicais que fazíamos com ele. Um barco de 100 pés que eu navegava sozinho com ele, primeiro veleiro no mundo com mastros totalmente autoportantes para navegar em altas latitudes e sem lastro (que serve para dar estabilidade nos barcos), que já fez várias viagens inéditas e o primeiro que pode dar uma volta e meia no mundo apenas a motor. Ficaram 3 anos brigando para conseguir comprar o barco, que vai ser usado por 10 anos para pesquisas científicas no Ártico, somente para escolas.

Revista Pet Center: O que você sentia antes de cada grande projeto? O que passava por sua cabeça?

Amyr Klink: Por incrível que pareça, terminar um projeto é legal, mas também triste ao mesmo tempo. Porque já queremos ir para o próximo. Antes de fazer sinto muita angústia, porque sempre tive muitos problemas financeiros. Fazia projetos de milhões e nunca tinha o dinheiro para desenvolvê-los e nem o conhecimento técnico para eles. Então, dependia muito de engenharia, de um plano de negócios bem-feito para sobreviver financeiramente na história, de soluções polêmicas, de materiais, tecnologia, metalurgia etc. O fato de não ter os recursos me fez um bom caçador de recursos e de informações, além de um bom ouvinte.

Revista Pet Center: Como você fez para planejar a parte financeira dos seus projetos, desde o início?

Amyr Klink: Nunca resolvi a parte financeira de cara. Eu me lançava no projeto e aos poucos ia conseguindo financiá-lo, comprando um imóvel, montando um estaleiro numa região pobre que sabia que ia valorizar. Ia me virando. Então, me atirava no projeto de cabeça sem saber como ia sair dele. Num projeto, o que mais gosto é do processo, de destrinchar ele.

Revista Pet Center: O que foi mais desafiador nas empreitadas que já fez no mar?

Amyr Klink: Na prática, foi a imprevisibilidades dessas regiões de latitudes muito altas, onde não se tem previsões meteorológicas confiáveis. Segunda parte eram os contratempos burocráticos. Resolvi vender o Paratii 2, por exemplo, pois ele virou um barco ônus para mim, muito caro de manter por dia. Além disso, por ele ser muito pesado, para navegar por países como a Argentina ou o Chile, tinha que passar pela corrupção. Éramos assaltados pelas autoridades portuárias, que queriam dinheiro vivo, não emitiam nota fiscal e esse tipo de procedimento é tudo que eu não quero na minha vida.

Revista Pet Center: Falando de parcerias. Para você, qual a receita para uma parceria de sucesso?

Amyr Klink: Para mim sempre foi muito fácil angariar parcerias, pois para algumas empresas, os meus projetos eram intimidantes e para outras eram objeto de curiosidade. Nunca fiz uma parceria com quem eu não tivesse uma ligação autêntica.

Revista Pet Center: Pensou em desistir em algum momento?

Amyr Klink: Muitas vezes. Desisti da passagem de Nordeste, na Rússia, por exemplo. Tinha o melhor barco do mundo para fazer essa passagem, mas quando fui pesquisar como fazia para chegar ao estreito de Bering, me deparei com a corrupção e a burocracia russa. Então, não tinha segurança jurídica de navegar lá, fora a dificuldade técnica, com temperaturas muito baixas e o gelo. E desisti. Não tenho vergonha nenhuma de desistir.

Revista Pet Center: Sua experiência de vida influenciou suas filhas?

Amyr Klink: Já fizemos umas 7 ou 8 viagens com nossas filhas e, uma delas, a Tamara, de 24 anos, finalizou uma travessia em Atlântico ano passado, num barquinho incrivelmente precário. Ela queria um barco meu emprestado, mas não deixei. Disse que ela tinha que fazer o dela. Quando me pediu ajuda, disse que ia ajudá-la não ajudando. Não dei um centavo para ela, deixei ela se virar. Daí ela descobriu que no Norte da Noruega pessoas abandonam os barcos, pois é muito caro ter um barco na marina o ano todo para usar por 2 meses só no ano. Ela achou um barquinho velho, de 35 anos, minúsculo, sem bomba d’água e nem banheiro, e veio sozinha, numa viagem de 84 dias até o Brasil.

Revista Pet Center: Ficou orgulhoso dela?

Amyr Klink: Fiquei. Mas fiquei mais orgulhoso pelo fato de minhas três filhas terem um talento muito grande para a literatura. Elas escrevem muito bem e em quatro idiomas. E essa é a grande herança que deixo para elas. Meu dinheiro elas não vão ter, nem meus bens e propriedades. Não vou deixar nem um centavo para elas.

Revista Pet Center: E no mundo dos negócios?

Amyr Klink: Eu não gosto do mundo dos negócios. Aprendi a ganhar dinheiro porque ele é importante para ter autonomia. Mas não quero ganhar mais do que ganho hoje, quero ter menos ativos e mais tempo. Me considero muito rico, porque faço o que eu gosto e a hora que eu quero. E ainda tenho muitas histórias para contar. Me tornei empreendedor para ter autonomia, não para ficar rico. E serei muito rico quando não tiver mais nada. Nem uma bicicleta. Adoro a casa que construí em São Paulo, mas prefiro alugar ela e ter dinheiro na conta. Ter tempo e liquidez. Hoje não tem sentido ter um barco de 50 milhões que você usa uma vez por mês. É muito mais barato locar o tempo de uso das coisas. Isso em tudo. Essa é a realidade das novas gerações, das minhas filhas, por exemplo. Elas não querem os bens, querem os benefícios.

Revista Pet Center: Você teria feito algo diferente do que fez?

Amyr Klink: Quase tudo (risos). Teria começado mais cedo talvez, mas não tinha a experiência e o conhecimento para fazer antes. Mas faria as viagens ainda mais simples do que fiz. Gosto muito do que faço, mas vamos aprendendo a fazer melhor com menos esforço e com mais alegria. Sou muito feliz em nunca ter perdido tripulantes ou pedaços de tripulantes e já vi muita gente perder. E esse histórico de zero acidentes me orgulha muito.

Revista Pet Center: O que você ainda anseia fazer?

Amyr Klink: Aumentar minha atividade náutica em Paraty. Tenho uma base náutica muito bonita lá e quero expandi-la. Queria expandir os meus concorrentes também, pois tenho uma atividade muito especial em que, quanto mais concorrentes tenho, mais eu ganho. Porque se tiver outra base igual a minha na frente, eu vou ter menos diaristas e mais mensalistas, pois as pessoas gostam de trocar de barco. Tenho o privilégio de ter uma atividade onde a concorrência aumenta o negócio para todo mundo. E queria ver essa atividade disseminada em todo o Brasil. Estou encantado também com as casas flutuantes. Temos uma tecnologia de flutuantes onde podemos fazer ilhas flutuantes com restaurante, posto de saúde, escolas, tudo sobre a água, qualquer tipo de água, do rio ao mar. O meu escritório em Paraty, por exemplo, fica em uma ilha no oceânico Atlântico, pertinho da costa brasileira. Queria contaminar outras pessoas com essas minhas ideias malucas.

Revista Pet Center: Que lições de vida pode nos passar?

Amyr Klink: Então, o mundo do empreendimento é um mundo que eu não gosto, mas é importante transitar corretamente por ele. Estamos vendo agora o que está acontecendo com as Lojas Americanas. Esses empresários alimentaram valores que não eram corretos: do lucro acima de tudo, do resultado a qualquer preço, da meritocracia acima do espírito comunitário. Hoje, o mais importante não é mais a formação em Harvard, mas sim, sua capacidade de relacionamento, seus valores humanos, suas habilidades socioemocionais. Fui bem-sucedido por não abrir mão de certos valores. Às vezes isso custa caro, já perdi negócios por isso, pois não faço concessões por dinheiro. Valores valem muito mais do que tudo hoje. Assim, por mais maluco ou inútil que possa parecer, faça o que você gosta, mas faça bem-feito.


Por Samia Malas